quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

AO APAGAR DAS LUZES



Havia um Ser. Havia uma canção no ar... Não era o bolero de Ravel, era L’indifferént com Jessye Norman. O Ser não era nenhuma Capitu de olhos de ressaca, obliquo e dissimulado procurando saída para seus sonhos. Nem tampouco nenhum Werther querendo entender o coração humano nem a queixar-se dos homens, que sofreriam menos se não se aplicassem tanto a invocar os males idos e vividos, em vez de esforçar-se para tornar suportável o presente .


Era apenas um Ser patético, que na sua quase ignorância nas coisas do amor e na sua lerdeza de Quasímodo, agarrava-se a um punhado de palavras escritas, procurando entender o significado delas, pois soavam tão destoantes das que já lhes foram ditas. Aos ouvidos do Ser, todas as palavras machucavam, mas apenas uma mais que as outras e que tanto lhe confundia: louco! Louco! Louco! Por que louco! Por ter amor dentro de si? Por não enxergar a maldade? Por confiar nas pessoas? Por ser tido como bonzinho? Para o Ser, quão difícil estava sendo desviar o olhar daquelas palavras, mas ele sentia que precisava se desligar delas, estavam carregadas de lembranças outras e exigiam dele que fossem sufocados sonhos e bem querer... Ao seu alcance um Caneletto não aberto, não era de vinho que precisava o Ser, ele precisava embriagar-se com aquelas palavras, elas precisavam embotar o seu cérebro, queimar os seus neurônios. Não foi sem dificuldade que o Ser levantou-se. Madrugada já se fora e logo mais a cotovia canta. Ao apagar das luzes, cortinas cerradas, na escuridão do quarto tropeçou em algo, segurou o palavrão e jogou-se por sobre a cama, braços cruzados sob a cabeça virada para um lado, atento ao irritante tic tac do relógio, que foi arremessado contra a parede. Reinando o silêncio, os olhos foram fechados esperando o dia raiar, afinal, um outro dia surgiria e um outro dia é sempre um outro dia...


E o outro dia surgiu , tão calmo e tão sereno, que ao Ser, só coube - observando o quarto em desordem, uma cadeira num canto virada e o sem número de papeis amassados, jogados por todo o ambiente - indagar: VIVI ISTO? SE VIVI, ESQUECI. Cadeira levantada, papeis apanhados e sem mais serem lidos, atirados um a um na cesta do lixo... E com passos firmes e decididos, caminhou o Ser em direção à porta, destrancando-a e saindo para oferecer o seu primeiro sorriso e desejar um bom dia a quem primeiro surgisse à sua frente. E deu bom dia e sorriu para o pequeno jornaleiro.

2 comentários:

Anônimo disse...

Que lindo,Zelia! Muitas vezes somos tidos como loucos por fazermos as coisas mais normais e simples... Foste correndo com tua crônica, nos prendendo maravilhosamente até esse lindo final...Um beijo,Chica (

Anônimo disse...

Que lindo,Zelia! Muitas vezes somos tidos como loucos por fazermos as coisas mais normais e simples... Foste correndo com tua crônica, nos prendendo maravilhosamente até esse lindo final...Um beijo,Chica