domingo, 15 de junho de 2008

SERÁ QUE A TIA FOI PRO CÉU?




Tive eu uma tia-avó chamada Dulcinéia, que era nanica por subnutrição, caritó por não ter tido outra opção e que fazia bonecas de pano para vender na feira e com isso sobreviver.

Danadinha a tia Dulcinéia, pobre, porém deveras orgulhosa. Passava uma necessidade de não fazer inveja a seu ninguém, mas disso não se queixava, nem ao bispo, e até tinha lá as suas mutretas para ludibriar os vizinhos abelhudos; para não ser pega de surpresa, sempre perto da hora do almoço – que muitas vezes não passava de uma “cabeça de galo” - mantinha sobre o velho fogão a lenha, duas panelinhas de barro com água fervendo, dando a impressão de que havia comida a cozinhar.

Beata como ela só, era fita larga cor vermelha da Irmandade do Coração de Jesus e encarregada de passar a sacola onde os fiéis, na missa e nos demais atos litúrgicos depositavam as suas contribuições para ajudar o santo papa, o padre da paróquia e as obras inacabadas da igreja. Diziam as más línguas que no final da coleta a tia Dulcinéia repartia as moedas: uma pra igreja e duas pra Dulcinéia.

Embora reconheça a tentação e o estado de miserabilidade da tia, sou mais pela sua honestidade. Se pecado ela cometeu foi contra São Sebastião, com quem tinha lá suas intimidades, e se fiando nisso, vez por outra, nos momentos de mais aperto, ela retirava do seu oratório a imagem do santo, colocava dentro de uma caixa de sapato forrada com um pedaço de cetim roxo, enfeitava com flores de papel crepom, envolvia com uma fita vermelha e saía de casa em casa pedindo uma ajuda pro dito. O arrecadado tomava por empréstimo, jurando de joelhos diante da imagem, logo que as bonequinhas fossem vendidas, ela devolveria em dobro.

Morreu velhinha a tia Dulcinéia. Quem a matou foram às bonecas, espetando o seu dedinho nanico com uma agulha enferrujada. Foi encontrada toda enrijecida com as perninhas pra cima feito um passarinho morto.

Será que a tia foi pro céu...?

NOTA: No oratório da tia Dulcinéia, aos pés da imagem de São Sebastião foi encontrada uma pequena sacola cheia de moedas.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

A MOÇA QUE PERDEU O OLHAR

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Estava lá a moça, meio tristonha depois de muito procurar o olhar que perdeu e com ele a sua alegria de viver, encaminhando-se para o pensatório, batendo a porta atrás de si. Até que tentei ajudar na busca do seu olhar, afinal, amigo – acho eu - é que nem aquelas coisas que o padre manda repetir na hora do casamento: unidos na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, e por ai vai. Bati na porta, ou bati à porta, sei lá eu , do pensatório, mas qual o quê, fechado estava, fechado permaneceu. Que é que eu fiz? Pus-me feito cão de guarda plantada no chão perto da porta.

Incomodava aos meus olhos um raio de sol que transpunha uma fresta na parede. Mas me mantinha firme no desejo de ajudar a moça e enquanto a porta do pensatório não abria, ocupei-me em contar e recontar os dedos dos pés e das mãos e já ia eu na casa do undécimo e nada da porta abrir.

Enfastiada, passei a enrolar o pensamento e já que falei no sol quis saber do Deus da moça, sim, por que ela, a moça, podia ter todos os defeitos do mundo, mas ela não era descrente, acreditava no Senhor lá do Alto, no céu, no inferno, no purgatório e até em alma do outro mundo! Mas, como ia dizendo, quis saber do Senhor Deus da moça dessa preferência que Ele tem pelos círculos: é lua redonda, planetas redondos, estrelas redondas , é assim que as vejo, nada de pontas e que para variar, por que Ele não fez o sol quadrado? Outra coisa: por que não de crocodilo as lágrimas que começam a rolar das calotas polares? Vou aproveitar para mandar um adeusinho de despedida para os ursos brancos. Esperai, com essa o Deus da moça não tem nada a ver, é coisa nossa.

E quem disse que a moça que perdeu o olhar estava preocupada com detalhes? A crise era existencial, mais profunda, estava tão virada para dentro de si mesma, mas tão virada que a gente até podia ver as costuras do seu avesso e olhe que quem a costurou não usou de profissionalismo.Foi ai que me deu uma vontade danada de dá uma espiadinha lá por dentro e mesmo sem ser autoridade no assunto parti para uma “autopsia” nos órgãos vitais. Fígado: barbaridade! Alinhavaram e deixaram vazar a bílis, que derramou e se tinha alguma coisa doce dentro dela ficou amarga. Pulmões: esses alinhavaram de tal forma que ela já não respira, só suspira. Coração, Deus dela! Fizeram deste, travesseiro de espetar agulha, perdeu sua função precípua: AMAR

Perdeu sua função precípua: AMAR. Não..., parece que aqui não cabe ação de amigo... É coisa pra príncipe encantado, para um “Dom Sebastião” o eterno esperado, dotado dos atributos e capacidade para retirar as agulhas e dá vida a sentimentos contidos , devolvendo assim, à moça, o seu olhar e a sua alegria de viver.

Vou rezar pra isso...